sábado, 18 de outubro de 2014
A Mulher esqueleto
A Mulher esqueleto
O livro Mulheres que correm
com os Lobos de Clarissa Pínkola Estés, é nossa bússola neste trabalho e
procuramos através dos workshops revelar e compartilhar os tesouros encontrados
nas histórias selecionadas.
A história escolhida da Mulher Esqueleto nos fala do amor
como união entre dois seres cuja força reunida permite a um deles, ou a ambos,
a entrada em comunicação com o mundo da alma e a participação no destino como
uma dança com a vida e a morte.
É um tema difícil,
principalmente para uma cultura que aprendeu a temer a morte, porém necessário
em nosso processo de evolução.
Os relacionamentos modernos
estimulam cada vez mais a rapidez na procura do que será eterno, porém para que
isso ocorra, precisamos nos tornar conhecedores das mortes e nascimentos
surpreendentes que criam o verdadeiro amor.
O caminho do coração é o caminho da criação e
precisamos da força e poder de cada parceiro para transformarmos os
relacionamentos amorosos.
A Mulher Esqueleto
“Ela havia feito alguma
coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que havia
sido”. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos, atirando-a ao
mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus olhos. Enquanto jazia
no fundo do mar, seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes.
Um dia um pescador veio
pescar. Bem, na verdade, em outros tempos muitos costumavam vir a essa baía
pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua colônia e não sabia que os
pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de que a enseada era
mal-assombrada.
O anzol do pescador foi
descendo pela água abaixo e se prendeu - logo em que! - nos ossos das costelas
da Mulher-esqueleto. O pescador pensou: “Oba, agora peguei um grande de
verdade! Agora peguei um mesmo!” Na sua imaginação, ele já via quantas pessoas
esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo sua carne duraria, quanto tempo
ele se veria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava com esse
enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma agitada, e o
caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá em baixo lutava para se
soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não
importa o que fizesse, ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a
superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas.
O pescador havia se voltado
para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das
ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas do crânio; não viu
os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas
mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado a
superfície e caia suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos. -
Agh! - gritou o homem, e seu coração afundou até os joelhos, seus olhos se
esconderam apavorados no fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho
forte.
- Agh! - berrou ele,
soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direção da
terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda
mais assustado, pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até a
praia. Não importava de que jeito ele desviasse o caiaque, ela continuava ali
atrás. Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se
agitavam como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.
- Aaagggggghhhh! - uivava
ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da
embarcação e saia correndo agarrado a vara de pescar.E o cadáver branco da
Mulher-esqueleto, ainda preso a linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás
dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou.Ele atravessou a tundra
gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que havia deixado
a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks.
O tempo todo ela continuou
atrás dele, na verdade até pegou um pedaço do peixe congelado enquanto era
arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava.
Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou se direto no túnel e, de quatro,
engatinhou de qualquer jeito para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali
deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal,
estava seguro, ah, tão seguro, é, seguro, graças aos deuses, Raven, é, graças a
Raven, é, e também a todo-generosa Sedna, em segurança, afinal.
Imaginem quando ele acendeu
sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela - aquilo - jogada num monte no
chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro,um joelho preso nas costelas, um
pé por cima do cotovelo. Mais tarde ele não saberia dizer o que realmente
aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado suas feições; talvez fosse o fato de
ele ser um homem solitário. Mas sua respiração ganhou um que de delicadeza, bem
devagar ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com
o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.
- Oh, na, na, na. - Ele
primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos.- Oh, na, na, na. -
Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que
os ossos da Mulher-esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser humano.
Ele procurou sua pederneira
na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais um
foguinho. Ficou olhando para ela de vez em quando enquanto passava óleo na
preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente sua linha de seda.
E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra - não tinha coragem - para
que o caçador não a levasse lá para fora e a jogasse lá em baixo nas pedras,
quebrando totalmente seus ossos.
O homem começou a sentir
sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava sonhando.Às vezes, quando os
seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha.
Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um sonho de
tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem.
A Mulher-esqueleto viu o
brilho da lágrima a luz do fogo, e de repente ela sentiu uma sede daquelas. Ela
se aproximou do homem que dormia, rangendo e retinindo,e pôs a boca junto a
lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu,bebeu e bebeu até
saciar sua sede de tantos anos.Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu
a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor
forte. Sentou-se e começou a batucar dos dois lados do coração: Bom, Bomm!...
Bom, Bomm!
Enquanto marcava o ritmo,
ela começou a cantar em voz alta.
- Carne, carne, carne!
Carne, carne, carne!- E quanto mais cantava, mais seu corpo se revestia de
carne.Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e gordas. Ela
cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente para
se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que as mulheres precisam.
Quando estava pronta, ela
também cantou para despir o homem que dormia e se enfiou na cama com ele, a
pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao
corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro, enredados da
noite juntos, agora de outro jeito, de um jeito bom e duradouro.
As pessoas que não conseguem
se lembrar de como aconteceu sua primeira desgraça dizem que ela e o pescador
foram embora e sempre foram bem alimentados pelas criaturas que ela conheceu na
sua vida debaixo d'água. “As pessoas garantem que é verdade e que é só isso o
que sabem.”
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