sexta-feira, 9 de janeiro de 2015
Pele de Foca pele de Alma
“A história nos fala de onde realmente viemos, do que
somos feitas e de como todas nós precisamos, com regularidade, usar nossos
instintos e descobrir o caminho de volta ao lar.”
O conto Pele de
Foca Pele da Alma proporciona desenvolver uma reflexão sobre nossa origem
psíquica e as verdadeiras motivações na vida.
As exigências do dia a dia muitas vezes nos afastam de nossa essência. Sem perceber vamos sendo moldados por ideias e valores que não são nossos. Assim nos distanciamos de nossa criatividade e do Self mais profundo e entramos muitas vezes num relacionamento só com o ego e a cabeça e não com a alma e o coração.
O Objetivo é de oferecer orientação para que possamos recuperar nossa identidade e nossa capacidade de encontrar o caminho de volta ao lar de nossa alma.
Pele
de foca, pele da alma.
Houve um tempo, que passou
para sempre e que irá logo estar de volta, em que um dia corre atrás do outro
de céus brancos, neve branca... e todos os minúsculos pontinhos escuros ao
longe são pessoas, cães, ou ursos.
Nesse lugar, nada viceja
gratuitamente. Os ventos são fortes, e as pessoas se acostumaram a trazer
consigo seus parkas, mamleks e botas, já de propósito. Nesse lugar, as palavras
se congelam ao ar livre, e frases inteiras precisam ser arrancadas dos lábios
de quem fala e descongeladas junto ao fogo para que as pessoas possam ver o que
foi dito. Nesse lugar, as pessoas vivem na basta cabeleira da velha Annuluk, a
avó, a velha feiticeira que é a própria Terra. E foi nessa terra que vivia um
homem... Um homem tão solitário que, com o passar dos anos, as lágrimas haviam
aberto fundos abismos no seu rosto.
Ele tentava sorrir e ser
feliz. Ele caçava. Colocava armadilhas e dormia bem. No entanto, sentia falta
de companhia. Às vezes, lá nos bancos de areia, no seu caiaque, quando uma foca
se aproximava, ele se lembrava de antigas histórias sobre como as focas haviam
um dia sido seres humanos e como o único remanescente daqueles tempos estava
nos seus olhos, que eram capazes de retratar expressões, aquelas expressões sábias,
selvagens e amorosas. Às vezes ele sentia nessas ocasiões uma solidão tão
profunda que as lágrimas escorriam pelas fendas já tão gastas no seu rosto.
Uma noite ele caçou até
depois de escurecer, mas sem conseguir nada. Quando a lua subiu no céu e as
banquisas de gelo começaram a reluzir, ele chegou a uma enorme rocha malhada no
mar e seu olhar aguçado pareceu distinguir movimentos extremamente graciosos
sobre a velha rocha.
Ele remou lentamente e com
os remos bem fundos para se aproximar, e lá no alto da rocha imponente dançava
um pequeno grupo de mulheres, nuas como no primeiro dia em que se deitaram
sobre o ventre da mãe. Ora, ele era um homem solitário, sem nenhum amigo humano
a não ser na lembrança — e ele ficou ali olhando. As mulheres pareciam seres
feitos de leite da lua, e sua pele cintilava com gotículas prateadas como as do
salmão na primavera. Seus pés e mãos eram longos e graciosos.
Elas eram tão lindas que o
homem ficou sentado atordoado, no barco, e a água nele batia, levando-o cada
vez mais para junto da rocha. Ele ouvia o riso magnífico das mulheres... Pelo
menos elas pareciam rir, ou seria a água que ria às margens da rocha? O homem
estava confuso, por se sentir tão deslumbrado. Entretanto, dispersou-se a
solidão que lhe pesava no peito como couro molhado e, quase sem pensar, como se
fosse seu destino, ele saltou para a rocha e roubou uma das peles de foca ali
jogadas. Ele se escondeu por trás de uma saliência rochosa e ocultou a pele de
foca dentro do seu qutnquq, parka.
Logo, uma das mulheres
gritou numa voz que era a mais linda que ele já ouvira... Como as baleias
chamando na madrugada... Ou não, talvez fosse mais parecida com os lobinhos
recém-nascidos caindo aos tombos na primavera... Ou então, não, era algo melhor
do que isso, mas não fazia diferença por que... O que as mulheres estavam
fazendo agora?
Ora, elas estavam vestindo
suas peles de foca, e uma a uma as mulheres-focas deslizavam para o mar,
gritando e ganindo de felicidade. Com exceção de uma. A mais alta delas
procurava por toda a parte a sua pele de foca, mas não a encontrava em lugar
nenhum. O homem sentiu-se estimulado — pelo quê, ele não sabia. Ele saiu de
trás da rocha, dirigindo um apelo a ela.
— Mulher... Case-se...
Comigo. Sou um... Homem... Sozinho.
— Ah — respondeu ela. — Eu
não posso me casar, porque sou de outra natureza, pertenço aos que vivem
temeqvanek, lá embaixo.
— Case-se... Comigo —
insistiu o homem. — Em sete verões, prometo lhe devolver sua pele de foca, e
você poderá ficar ou ir embora, como preferir.
A jovem mulher-foca ficou
olhando muito tempo o rosto do homem com olhos que, se não fossem suas origens
verdadeiras, pareciam humanos.
— Irei com você — disse ela,
relutante. — Dentro de sete verões, tomaremos a decisão.
E assim, com o tempo,
tiveram um filho a quem deram o nome de Ooruk. A criança era ágil e gorda. No
inverno, a mãe contava a Ooruk histórias de seres que viviam no fundo do mar
enquanto o pai esculpia um urso em pedra branca com uma longa faca. Quando a
mãe levava o pequeno Ooruk para a cama, ela lhe mostrava pelo buraco da
ventilação as nuvens e todas as suas formas. Só que, em vez de falar das formas
do corvo, do urso e do lobo, ela contava histórias da vaca-marinha, da baleia,
da foca e do salmão... pois eram essas as criaturas que ela conhecia.
A princípio, ela escamou e
depois passou a rachar. A pele das suas pálpebras começou a descascar. O cabelo
da sua cabeça, a cair no chão. Ela se tornou naluaq, do branco mais pálido.
Suas formas arredondadas começaram a definhar. Ela procurava esconder seu
caminhar claudicante. A cada dia seus olhos, sem que ela quisesse, iam ficando
mais opacos. Ela passou a estender a mão para tatear porque sua vista estava
escurecida.
E as coisas iam dessa forma
até uma noite em que o menino Ooruk despertou ouvindo gritos e se sentou ereto
nas cobertas de pele. Ele ouviu um rugido de urso, que era seu pai repreendendo
a mãe. Ouviu, também, um grito como o da prata que ressoa com uma pedra, que
era sua mãe.
— Você escondeu minha pele
de foca há sete longos anos, e agora está chegando o oitavo inverno. Quero que
me seja devolvido aquilo de que sou feita — gritou a mulher-foca.
— E você, mulher — vociferou
o marido. — Você me deixará se eu lhe der a pele.
— Não sei o que eu faria. Só
sei que preciso daquilo a que pertenço.
— E você me deixaria sem
mulher, e a seu filho, sem mãe. Você é má.
Com essas palavras, o marido
afastou com violência a pele da porta e desapareceu noite adentro.
O menino adorava a mãe. Ele
tinha medo de perdê-la e, por isso, chorou até dormir... Só para ser acordado
pelo vento. Um vento estranho... que parecia chamálo.
— Oooruk, Ooorukkkk.
Ele pulou da cama, tão
apressado que vestiu o parka de cabeça para baixo e só puxou os mukluks até a
metade. Ao ouvir seu nome chamado insistentemente, ele saiu correndo na noite
estrelada.
— Ooooooorukkk.
O menino correu até o
penhasco de onde se via a água e lá, bem longe no mar encapelado, estava uma
foca prateada, imensa e peluda... Sua cabeça era enorme. Seus bigodes lhe caíam
até o peito. Seus olhos eram de um amarelo forte.
— Ooooooorukkk.
O menino foi descendo o
penhasco de qualquer jeito e bem junto à base tropeçou numa pedra, não, numa
trouxa, que rolou de uma fenda na rocha. O cabelo do menino fustigava seu rosto
como milhares de açoites de gelo.
— Ooooooorukkk.
O menino abriu a trouxa e a
sacudiu: era a pele de foca da sua mãe. Ah, ele sentia seu perfume na pele
inteira. E, enquanto mergulhava o rosto na pele de foca e respirava seu cheiro,
a alma da mãe penetrava nele como um súbito vento de verão.
— Ah — exclamou ele com
alegria e dor, e levou novamente a pele ao rosto. Mais uma vez, a alma da mãe
passou pela dele. — Ah!!! — gritou ele de novo, porque estava sendo impregnado
pelo amor infindo da mãe.
E a velha foca prateada ao
longe mergulhou lentamente para debaixo d'água.
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