sexta-feira, 9 de janeiro de 2015
O Urso da Meia Lua
. A história fala da
raiva e do perdão, nos traz uma reflexão dos sentimentos que nos afastam de
nossa alma e de nossa alegria.
Aponta-nos para a questão da raiva e de como estabelecer
um diálogo com os nossos aspectos feridos e do perdão.
Fornece-nos sinais
de como atingir o equilíbrio transformando-os em ato de criação e possibilidade
de renascimento.
O objetivo do workshop é oferecer um espaço para que possamos partilhar a sabedoria contida nessa história de revelação que nos dá um modelo completo de como tratar e curar a raiva.
O Urso da Meia Lua
Era uma vez uma jovem mulher
que vivia numa perfumada floresta de pinheiros. Seu marido esteve fora, lutando
na guerra, muitos anos. Quando ele afinal foi liberado, voltou para casa com o
pior dos humores. Ele se recusou a entrar na casa, pois havia se acostumado a
dormir nas pedras. Ele só queria ficar só e permanecia na floresta tanto de dia
quanto à noite.
A jovem esposa ficou tão
feliz quando soube que o marido estava afinal voltando para casa. Ela cozinhou
e fez compras, e fez compras e cozinhou. Preparou pratos e mais pratos, tigelas
e mais tigelas, de delicioso queijo branco de soja, três tipos de peixe, três
tipos de algas, arroz salpicado com pimenta vermelha e belos camarões frios,
grandes e alaranjados.
Com um tímido sorriso, ela
levou os alimentos até o bosque e se ajoelhou ao lado do marido esgotado pela
guerra, oferecendo-lhe a bela refeição que havia preparado. No entanto, ele se
pôs de pé e chutou as travessas de modo que o queijo de soja caiu, os peixes
saltaram no ar, as algas e o arroz caíram na terra e os grandes camarões
alaranjados rolaram pelo caminho abaixo.
— Deixe-me em paz! — rugiu
ele, voltando-lhe as costas. Ele estava tão furioso que ela sentiu medo. E
afinal, em desespero, ela foi procurar a gruta da curandeira que morava fora da
aldeia.
— Meu marido foi ferido
gravemente na guerra — disse a esposa. — Ele sofre de uma raiva permanente e
não come nada. Só quer ficar ao ar livre e não se dispõe a voltar a viver
comigo. A senhora não pode me dar uma poção que faça com que ele volte a ser
carinhoso e gentil?
— Isso eu posso fazer por
você — asseverou-lhe a curandeira. — Mas vou precisar de um ingrediente
especial. Infelizmente, acabou todo meu pêlo de urso de meia-lua. Por isso,
você deve subir a montanha, encontrar o urso negro e me trazer um único pêlo da
meia-lua que ele tem no pescoço. Depois, eu lhe darei o que você precisa, e a
vida voltará a ser boa.
Algumas mulheres teriam se
sentido desencorajadas com essa tarefa. Algumas teriam considerado que todo
esse esforço era impossível. Mas não ela, pois ela era uma mulher que amava.
— Ah! Como lhe sou grata! É
tão bom saber que existe uma solução.
E assim ela se preparou para
a viagem e na manhã seguinte partiu para a montanha.
— Arigato zaishö — dizia
ela, o que é uma forma de cumprimentar a montanha
e lhe dizer "Obrigada
por me deixar escalar seu corpo".
Ela se embrenhou nos
contrafortes, onde havia rochas semelhantes a grandes pães de forma. Subiu até
um platô coberto de mata. As árvores tinham galhos longos e caídos e folhas que
se pareciam com estrelas.
— Arigato zaishö — entoou.
Era uma forma de agradecer as árvores por erguerem seus cabelos para que ela
pudesse passar por baixo. E assim ela conseguiu atravessar a floresta e começou
a subir de novo.
Agora estava mais difícil. A
montanha tinha flores espinhosas que se prendiam na barra do seu quimono e
rochas que arranhavam suas mãos delicadas. Estranhos pássaros escuros saíram
voando na sua direção no crepúsculo, deixando-a assustada. Ela sabia que eles
eram os muen-botoke, espíritos dos mortos que não tinham parentes. Ela entoou
orações para eles.
— Vou ser sua parenta. Vou
dar-lhes descanso.
Ela prosseguia subindo pois era uma mulher que
amava. Subiu até ver neve no pico da montanha. Logo seus pés estavam frios e
molhados, e ela continuava a escalar, pois era uma mulher que amava. Começou
uma tempestade, e a neve penetrava direto nos seus olhos e fundo nas suas
orelhas. Mesmo sem ver, ela continuava a subir.
— Arigato zaishö — cantou a
mulher quando a nevasca parou, para agradecer aos ventos por terem parado de
cegá-la. Ela procurou abrigo numa caverna rasa e mal conseguiu lugar para seu
corpo inteiro. Embora tivesse uma bolsa cheia de alimentos, ela não comeu, mas
se cobriu com folhas e adormeceu. Pela manhã, o ar estava calmo e plantinhas
verdes chegavam a atravessar a neve aqui e acolá.
— Ah — pensou ela. — Agora,
ao urso da meia-lua.
Ela procurou o dia inteiro e
quase ao anoitecer encontrou grossos cordões de bosta. E não precisou procurar
mais, pois um gigantesco urso negro passou pesadamente pela neve, deixando
profundas marcas de patas e garras. O urso da meia-lua deu um rugido feroz e
entrou na sua toca. A mulher enfiou a mão na trouxa e colocou numa tigela a
comida que trouxera. Ela colocou a tigela do lado de fora da toca e voltou
correndo para o seu esconderijo. O urso sentiu o cheiro da comida e saiu
cambaleando da toca, rugindo tão alto que pequenas pedras se soltaram do lugar.
O urso fez um círculo em volta da comida de uma certa distância, farejou o
vento muitas vezes e depois comeu tudo de uma só vez. O enorme urso foi andando
de ré e sumiu dentro da sua toca.
Na noite seguinte, a mulher
agiu da mesma forma, servindo o alimento na tigela, mas dessa vez não voltou
para seu esconderijo, recuando apenas metade do caminho. O urso sentiu o cheiro
da comida, saiu pesadamente da toca, rugiu para abalar os céus e as estrelas,
deu uma volta, farejou o ar com extremo cuidado, mas afinal engoliu a comida e
voltou para a toca. Isso continuou por muitas noites até que numa noite escura
a mulher sentiu ter coragem suficiente para esperar ainda mais perto da toca do
urso.
Ela pôs a comida na tigela
do lado de fora da toca e ficou esperando junto à abertura. Quando o urso
sentiu o cheiro e saiu, ele viu não só a comida mas também um par de pequenos
pés humanos. O urso virou a cabeça de lado e rugiu tão alto que fez os ossos do
corpo da mulher zumbirem.
A mulher tremia, mas não
recuava. O urso se ergueu nas patas traseiras, estalou as mandíbulas e rugiu
tanto que a mulher pôde ver bem o céu vermelho e marrom da sua boca. Mesmo
assim, ela não saiu correndo. O urso rugiu ainda mais e estendeu seus braços
como se quisesse agarrá-la, com suas dez garras suspensas como dez facas sobre
sua cabeça. A mulher tremia como uma folha ao vento, mas permaneceu onde
estava.
—Por favor, meu querido urso
— implorou ela. — Por favor, vim toda essa distância em busca de uma cura para
meu marido. — O urso voltou as patas dianteiras para a terra fazendo voar a
neve e olhou direto no rosto assustado da mulher. Por um instante, ela teve a
impressão de ver cordilheiras inteiras, vales, rios e aldeias refletidos nos
olhos vermelhíssimos do urso. Uma paz profunda caiu sobre ela, e seus tremores
passaram.
—Por favor, urso querido, eu
venho lhe trazendo aumento todas essas noites. Será que eu podia ficar com um
dos pêlos da meia-lua do seu pescoço? — O urso parou e pensou, essa mulherzinha
seria fácil de devorar. No entanto, ele de repente se sentiu cheio de pena
dela.
— É verdade —disse o urso da
meia-lua, sem afastar as garras da sua cabeça. —Você foi boa para mim. Pode
ficar com um dos meus pêlos. Mas arranque-o rápido, vá embora e volte para sua
gente.
O urso ergueu seu enorme
focinho para que aparecesse a meia-lua branca do seu pescoço, e a mulher viu
ali a forte pulsação do seu coração. A mulher pôs uma das mãos no pescoço do
urso, e com a outra segurou um único pêlo branco e lustroso. Rapidamente ela o
arrancou. O urso recuou e gritou como se estivesse ferido. E essa dor assumiu a
forma de bufos irritados.
— Ah, obrigada, urso da
meia-lua, muitíssimo obrigada. — A mulher se inclinou em reverência e voltou a
se inclinar. Mas o urso rosnou e avançou um passo.
Ele rugiu para a mulher com
palavras que ela não entendia e, no entanto, palavras que de algum modo havia
conhecido toda a vida. Ela se voltou e correu montanha abaixo com a maior
velocidade possível. Ela passou correndo debaixo das árvores de folhas com
formato de estrelas. E o tempo todo ela agradecia às árvores por erguerem os
galhos para ela passar. Ela veio tropeçando pelas pedras que pareciam grandes
pães de forma, sempre agradecendo à montanha por deixar que ela escalasse seu
corpo.
Embora suas roupas
estivessem esfarrapadas, seu cabelo desalinhado, seu rosto sujo, ela desceu a
escada de pedra que levava até a aldeia, seguiu pela estrada de terra
atravessando a cidade até o outro lado e entrou na cabana onde a curandeira
estava sentada cuidando do fogo.
—Olhe! Olhe! Consegui,
encontrei, conquistei um pêlo do urso da meia-lua! —gritou a jovem mulher.
— Que bom — disse a
curandeira com um sorriso. Ela examinou a mulher atentamente, pegou o pêlo de
um branco puríssimo e o segurou perto da luz. Ela sopesou o longo pêlo com uma
das mãos e o mediu com um dedo e exclamou: — É! Este é um autêntico pêlo do
urso da meia-lua.
De repente, porém, ela se
voltou e lançou o pêlo no meio do fogo, onde ele estalou, pipocou e se consumiu
numa bela chama laranja.
—Não — gritou a mulher. — O
que a senhora fez?
—Fique calma. Está certo.
Tudo está bem — disse a curandeira. — Você se lembra de cada passo que deu para
escalar a montanha? Você se lembra de cada passo que deu para conquistar a
confiança do urso da meia-lua? Você se lembra do que viu, do que ouviu e do que
sentiu?
—Lembro — disse a mulher. —
Lembro-me muito bem.
—Então, minha filha — disse
a velha curandeira com um sorriso meigo —Volte por favor para casa com seus
novos conhecimentos e proceda da mesma forma com seu marido.
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