domingo, 6 de janeiro de 2013
A MOÇA TECELÃ
Acordada ainda no escuro, como se
houvesse o sol chegado atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se no tear.
Linha clara, para começar o dia.
Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos,
enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam
tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim
pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do
algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um
fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva
vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o
frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava à moça tecer com
seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado
para o outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a
moça passava seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia
um lindo peixe, com cuidados de escamas. E eis que o peixe estava na mesa,
pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã de leite que entremeava o
tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era
tudo o que queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria
trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou como seria
bom ter um marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho
de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e
as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo,
chapéu emplumado, rosto barbeado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava
justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando
bateram à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão
na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando na sua vida.
Aquela noite, deitada contra o ombro
dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a
sua felicidade.
E feliz foi, por algum tempo. Mas se o
homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do
tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
- Uma casa melhor é necessária – disse
para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as
mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a
casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu
suficiente. - Por que ter casa, se podemos ter palácio? - Perguntou. Sem querer
resposta, imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates de prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou
a moça tecendo tetos e portas, pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía
lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não
tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar
batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal, o palácio ficou pronto. E entre
tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da
mais alta torre.
– É para que ninguém saiba do tapete –
disse. E antes de trancar a porta a chave advertiu: - Faltam as estrebarias. E
não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher caprichos
do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de
criados. Tecer era tudo o que queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo
em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros.
E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se
enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça para não
fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha
nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e, jogando-a veloz de um lado para
o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as
estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as
maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o
jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido,
estranhando a cama dura, acordou, e espantado olhou em volta. Não teve tempo de
se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés
desparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe o corpo, tomou o
peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do
sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios,
delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.
(Marina Colasanti)
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